Vamos encerrar pra poder falar da Andaluzia e partir pra Parte 2 - Leste da viagem.
Primeiro preciso dizer que não é que eles simplesmente provocam e matam um touro na frente de uma platéia vibrando. Eles provocam e matam *seis* touros, um atrás do outro. Fiz uns vídeos que posto assim que descobrir como fazer isso, mas não é nada tranqüilo: o touro entra já com uma bandeirinha no cupim, e disso são três seções: na primeira, um monte de subalternos (o nome é esse) fica provocando o bicho e pulando pra fora da arena quando ele chega perto, todos com muletas (a capa do toureiro) rosas, e o objetivo é cansar um pouco o bicho. Junto com isso tem uns caras a cavalo com umas lanças, e os cavalos usam armadura e ficam vendados pra não verem o touro e fugirem; o touro, vendo alvos grandes, vai seco e não só crava os chifres na armadura como tem o cupim perfurado bem fundo pela lança do cavaleiro; com isso ele perde força e não tem tanta facilidade pra investir.
Na segunda etapa, três caras sem a capa correm em direção ao touro e enfiam umas bandeirinhas nas costas dele, bandeirinhas estas que segundo meus tutores no assunto não têm função prática, só estética.
No fim, aparece o matador, toureiro com uma muleta (capa) vermelha e espada de madeira, e ele faz aquela parte mais famosa, que é ficar driblando o touro, já bem cansado e com os músculos de tração bem danificados, até o touro cansar e estar quase incapaz de continuar investindo.
No fim do terceiro ato, o matador troca a espada de madeira por uma de metal, faz mais uns floreios e enfia um metro de aço pelo cupim do touro, com o objetivo de chegar no coração. Se o bicho não morre de primeira, ele tenta outra vez, mas é quase impossível ganhar qualquer prêmio se isso acontece.
Mas tem mais: primeiro, é um touro, então mesmo acertado em cheio ele demora uns vários minutos pra morrer, com os subalternos e suas capas rosas voltando pra fazer firula até ele cair. Depois, é bem comum que o bicho precise de mais de uma estocada, e aí a platéia reclama, vaia e etc., e começam a tocar umas cornetas de aviso pro matador. Por último, se o touro estiver resistindo, o matador troca de espada e pega uma outra, a qual ele enfia na nuca do touro algumas vezes (se chama descabelar) até atingir uma parte do cérebro importante o suficiente pro bicho cair na hora. Pra garantir, vem um cara com uma faquinha, coloca no mesmo lugar e dá aquela chacoalhada. Mesmo já no chão, o touro treme todo nessa hora. O matador agradece a platéia e três mulas aparecem pra arrastar o corpo.
Seis vezes. Uma atrás da outra.
Do meu lado, o Pedro, um mexicano que encontrei em Granada e que ia pra Madrid. Como estava barato (€6,50, num lugar que pode chegar a custar €100), porque era novilhada - com touros e toureiros mais jovens -, tinha comprado 2 ingressos acreditando que ia achar alguém mesmo pra ir junto. Não só achei um cara como achei um cara que vai em tourada como se vai em jogo de futebol, me explicou bem como funciona isso aí em cima e muito mais. O Danilo já tinha me dado uma introdução, e nos jornais diários da Espanha tem todo dia uma seção Toros dentro de Deportes, a qual acompanhei um pouco.
Além do Pedro, uns espanhóis que me entregaram um papel branco pra agitar se o espetáculo estivesse muito bom, o que acabou não acontecendo, e um grupo de americanos que não calou a boca um segundo. Incluindo estarem enfiando uma faca no cérebro de um ser vivo e eles estarem contando pro amigo sobre um bar legal que tem no Arkansas ou da calça que comprou semana passada. Eu (de todas as pessoas) tive que pedir silêncio e respeito, e que ouvir que não, que eles não podiam respeitar a morte por uns minutos. Cidadania européia faz falta às vezes.
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A verdade é que não tem nenhuma justificativa, dentro dos princípios professados pelo mundo liberal contemporâneo, pra existir uma coisa como a tourada. É causar sistematicamente um sofrimento totalmente desnecessário a um bicho que sente dor, em favor do entretenimento de uns tantos outros bichos e do sustento da vida de uns outros. Se algum significado ritual já existiu, perdeu-se no tempo, e nunca teria sentido pra nosotros turistas.
Uma saída fantástica é a legitimação pela existência. Ou seja, se uma coisa existe é porque é boa, ou pelo menos é melhor do que as coisas que não existem mais, toda essa velharia que deu lugar ao fantástico mundo do hoje.
Mas, exceto se entrarmos no mundo dos argumentos bizarros ('esse touro nem ia estar vivo se não fosse pela tourada', 'ele também tenta matar os homens'), o único jeito é admitirmos que nos consideramos mais importantes que o touro, o suficiente pra o nosso entretenimento valer todo o susto e a confusão e a dor e a morte. E, embora não seja um bicho totalmente indefeso (a cada 5 anos um toureiro dá azar), atualmente as chances estão bem pro lado do homem.
E, se somos mais importantes que o touro, temos que admitir que de duas uma: ou fomos criados melhores que ele, e portanto é absolutamente natural que nos sirvamos do sofrimento dele pra nos divertir; ou conquistamos nossa superioridade fazendo fogo e aprendendo a plantar e a construir fábricas, metralhadoras e câmeras digitais. Ou já nascemos desiguais ou nos fazemos desiguais, como diria Hanna Arendt.
Em qualquer dessas hipóteses, eu perco o direito de reclamar da arrogância dos americanos.