sexta-feira, 1 de junho de 2007

72h (parte 3/3)

Quando acordei no dia seguinte fazia sol mas continuava um pouco frio porque trás-os-Montes fica bem alto e o Stephen já tinha ido embora e eu não podia pedir carona pros americanos porque eles estavam filmanto, por isso depois de tomar um banho só arrumei minhas coisas rapidamente, coloquei minhas duas mochilas nos ombros e saí, e eu tinha que tirar as mochilas das costas na recepção porque eu não passava com elas pela porta. Paguei a dona do hotel os 20 euros que faltavam e expliquei que eu precisava decidir pra onde ia porque só sabia que estava no norte de Portugal e tinha que estar na Galícia em uns dois ou três dias, sendo que Vidago que era onde eu estava nem aparecia no meu mapa. Então ela me deu um mapa da região e disse que não sabia como eu podia fazer, mas que os horários dos autocarros estavam num bar da cidade porque a rua principal estava em obras então os ônibus estavam passando fora da cidade, e Vidago é uma cidade muito pequena mesmo então não estranhei e segui o que ela mandou.

Cheguei ao bar depois de perguntar pra algumas pessoas onde era e fiquei me decidindo se voltava para dentro de Portugal por Vila Real e talvez passasse em Braga de novo, e podia ir pra Guimarães onde queria ir antes e então para Valença do Minho e Tui, no sul da Espanha, que o meu amigo Guilherme Penin havia dito que era muito bonita, mas a outra opção era ir logo de uma vez pra Galícia por uma cidade que se chamava Chaves e era quase na fronteira. No bar havia uns velhos e um era galego com parentes no País Basco e por toda a Espanha e disse que se ele hoje fosse pra Chaves me levaria mas não ia, e também um outro era espanhol e ficou me dizendo que era bom que eu iria conhecer tanto a Espanha e que nem ele conhecia tanto. Mas decisiva mesmo foi a opinião da dona do bar, que disse que era melhor ir por Chaves mesmo se eu queria ir à Galícia porque do outro lado ia dar muitas voltas e ela nem sabia se tinha estrada, e me disse que o ônibus pra Chaves passava logo à uma e meia e já eram dez pra uma, então peguei minhas coisas e fui pra rotatória que me indicaram que era onde passaria o ônibus, mas lá também estava em obras por isso cheguei a ficar bastante confuso.

O povo da região me pareceu tão amigável que decidi tentar pegar carona, e um ônibus passou mas não parou e fiquei aguardando e pela primeira vez na vida simplesmente com o polegar estendido no sinal universal de pedir carona, e uns 15 minutos depois realmente um carro parou, e era um furgão de empresa. O motorista se chamava Artur e me disse que eu tinha dado sorte de pegar um carro de empresa porque os carros particulares param pouco e podem ser perigosos, e que ele rodava Portugal há seis anos entregando tintas e inclusive gostava do Brasil e iria para lá logo que pudesse com uma brasileira que morava em Portugal e era de Minas Gerais, e fiquei dizendo pra ele os lugares que ele tinha que conhecer no Brasil, e ele então disse que iria até o centro de Chaves mas antes iria parar pra comer num lugar perto e eu poderia ficar por lá, e eu respondi que se ele rodava Portugal há seis anos ninguém seria melhor que ele pra indicar um lugar pra comer e eu com certeza iria comer com ele.

Chegamos ao restaurante que era muito limpo e servia refeições entre seis e sete e meio euros, então pedimos um bife de peru mas não tinha, e ele pediu uma vitela e eu carne de porco, combinamos de dividir uma garrafa de vinho e eu comecei a falar como era barato o vinho em Portugal e ele me disse então que era como o chopp no Brasil. Chegaram os pães e o vinho e depois a comida e tudo era numas porções bem grandes e eu comentei como a escolha do lugar tinha sido ótima e ele me mostrou uma foto da brasileira no celular e ela era uma mulata clara, e fiz uma brincadeira sobre ela e ele começo a falar que eles claro que não eram só amigos e então eu disse que no Brasil se diz que caminhoneiro tem uma família em cada Estado e ele também deve ter outras amigas, e comemos tudo e ainda tomamos café, mas no fim quando fomos pagar o garçom olhou pra nós dois e disse: ‘Quinze euros’, e então rachamos a conta e fomos pra Chaves. Entramos no carro e o Artur me explicou direito o que eu devia ver em Chaves e disse que já conhecia ali, e também me levou até onde depois eu podia pegar outra carona e eu disse que não sabia ainda se ia pegar outra carona ou se ia pegar o ônibus mesmo até Ourense.

Desci do carro e me despedi do Artur e fui carregando as mochilas até atravessar a ponte romana de Chaves, que era do ano 104 depois de Cristo e foi construída por Trajano, e fiquei observando todos os Joaquins passando de carro e a pé pela ponte e pensando que alguns deviam até nem saber disso, mas logo em seguida notei que aquela era a cidade deles e eu é que devia ser o idiota da história. Pensei um pouco na ponte que tinha 19 séculos e estava ali com escritos em latim sobre pedra sendo usada pelos portugueses e andei pelos jardins da margem do rio, que é o Tâmega, pensando que eu nem fazia idéia do nome das árvores e elas deviam se chamar freixos ou olmos e talvez a vegetação fosse uma charneca ou outro nome exótico, e logo perguntei onde ficava o castelo de Chaves e um velho na rua me respondeu e mostrou que estava muito perto.

Subi até o castelo, que era mais um forte com canhões e uma torrezinha e estava sem muita limpeza das pichações, e era cercado por uma cidadezinha do interior português. Larguei as mochilas num lugar meio visível porque já estavam pesando muito, e um velho inclusive disse que depois minhas costas iam reclamar disso mas eu disse que era jovem e minhas costas estavam praticamente de férias com isso, e olhei em volta e tirei umas fotos e subi no castelo por meio euro, e com isso vi o museuzinho militar na torre e também podia ver o outro museu, da Chaves pré-romana e romana. Entrei nos dois e deixei a mochila grande com umas mulheres que tomavam conta da torre, depois fui até um mosteiro medieval que agora é um hotel caro e onde tinha umas árvores e eu quis saber o nome delas, e perguntei o nome para a mulher que lavava o chão e ela me disse que eram amoreiras, então fui até lá e tinha amoras e comi algumas e percebi que estava ficando tarde e eu devia pegar a próxima carona durante o dia ainda.

Peguei de volta minha mochila e fui até onde o Artur tinha me indicado, e fiquei tentando um certo tempo pegar carona e os homens dentro dos carros ficavam apontando pra frente e eu não sabia o que era aquele sinal, mas logo um carro velho vermelho parou logo em frente e deu marcha a ré. O carro era particular como o Artur me disse que era raro parar e que podiam querer cobrar, e o cara dentro do carro era galego e me pareceu um pouco suspeito e perguntou pra onde eu ia, e eu disse que ia pra Espanha e era brasileiro e ele ficou feliz e colocou minha mochila grande no porta-malas respondendo que tinha duas brasileiras no carro e podíamos conversar. Mas quando eu entrei no carro vi que as duas não tinham ficado nada felizes de eu ser brasileiro e estavam tentando evitar conversa, e eram mulatas com cabelo alisado e quando falavam era óbvio que eram pessoas sem instrução, e logo percebi que eu não devia perguntar muito e fiquei falando com o motorista que minha família era da Galícia e tal, mas quando perguntei pra onde ele ia ele disse que ia pra logo depois da fronteira sem falar onde e que ia me deixar na gasolinera e de lá eu devia pegar outra carona.

Passamos a fronteira e uma das brasileiras comentou que uma vez estava cheio de polícia e eles fugiram por um lado e disso eu depreendi que elas eram ilegais, enquanto a outra ficava brincando com um celular que tocava músicas brasileiras populares. Quando chegamos à gasolinera desci e vi uma barraca onde estava escrito ‘LARANXA’ e isso me encheu de empolgação porque percebi que estávamos na Galícia e havia toda a Espanha multicultural logo adiante, então nem dei atenção pro cara do carro e disse adeus e comecei a andar pela estrada, que era de uma pista pra cada lado só mas bem conservada e tinha um bom acostamento, e fui em frente com as duas mochilas enquanto olhava pra paisagem cheia de umas árvores de flor amarela que depois descobri que eram acácias e eu respirava o ar galego, e depois de uns 15 minutos vi um lugar com uma placa Club alguma coisa na beira da estrada e o carro vermelho e velho que tinha me dado carona, e disso deduzi que as duas brasileiras deviam ser prostitutas e por isso tinham tanto medo.

Continuei andando e então percebi que podia ter feito besteira porque não fazia idéia de quanto faltava pro povoado que eu achava que era logo adiante chegar, e fui me cansando e comecei a tentar pedir carona, mas os motoristas ou não olhavam ou faziam aquele sinal com um dedo pra frente que eu não sabia o que era, e teve até um ônibus pro qual eu pedi carona e que me fez aquele sinal com os dedos juntos pra cima que os italianos fazem quando estão inconformados. Andei uma meia hora e fui me cansando muito mas continuava estremamente empolgado e foi então que pensei que há apenas 72 horas eu estava em Coimbra decidindo se devia subir com os poetas pro norte ou se devia ir até Lisboa e pegar um avião, e esse pensamento me mantinha andando rápido até que cheguei a um lugar onde tinha um café e saía uma rua com casas, e fiquei aliviado porque achei que ali seria mais fácil pegar carona, porque lógico que as pessoas devem ter medo de dar carona pra alguém no meio da estrada mas se existe uma civilização perto a coisa fica mais plausível. Do outro lado tinha um lugar vermelho com uma placa ‘CLUB MOULIN ROUGE’, e disso eu deduzi que ali era outro puteiro e fiquei mais certo disso quando fui perguntar se passava ônibus ali e a mulher que atendeu era brasileira e uma outra que apareceu depois também, mas elas eram bem feias pra prostitutas e eu pensei que devia ser uma coisa bem deprimente a vida por ali.

Tinha uma parada de ônibus na frente e a puta ou cafetina me explicou que o último do dia já tinha passado e eu teria que pegar um táxi, mas resolvi dar uma última chance e ficar no ponto de ônibus com o polegar estendido até anoitecer. Foi uma boa idéia, porque depois de um tempo parou um carro e um senhor bem educado me perguntou aonde ia e eu disse que até Ourense ou Vigo, eu não sabia, mas que qualquer lugar naquela direção servia, pra ir ao menos até a cidadezinha de Verín, que ficava logo ali. E ele me disse que se chamava Ramón e era galego de Verín mas trabalhava em Portugal e nos últimos tempos ninguém mais pegava carona, e eu comentei das prostitutas brasileiras e ele disse que por alguma razão Verín tinha se tornado o centro regional das prostitutas e elas vinham do Brasil e também do Leste Europeu e que ele mesmo tinha se casado com uma colombiana mas era divorciado e sobrou a pequenina, e eu resolvi não perguntar se essa ex-mulher era puta também.

O Ramón me disse que se eu queria carona para Ourense ele podia me deixar na gasolinera, mas eu achei melhor pegar um ônibus e então ele me levou até a rodoviária, e tinha um ônibus pra lá mas era o das 22 horas e eram sete e meia. Tinha uma casa de internet na frente e então falei pra ele que eu ficaria lá até as dez, e agradeci e entrei e fui ver meus e-mails e escrever pros amigos. Escrevi por um tempo e quando olhei o relógio do computador marcava 9 e 55 mas estava praticamente de dia lá fora e então um ônibus passou e eu paguei correndo e saí mas tinha perdido o ônibus. Uma velhinha na rua me disse que o ônibus fazia uma parada no hospital antes de ir e que os taxistas sabiam onde era, mas quando perguntei o taxista não fazia a mínima idéia de hospital nenhum e ficou me fazendo perguntas e eu percebi que tinha perdido o ônibus e eram 10 da noite e estava tudo fechado, mas por sorte estava claro e eu podia andar sem muito perigo.

Saí procurando por camas e falando portunhol e me indicaram um lugar, e entrei numa pousada e havia pessoas tomando sopa e uma senhora meio mal-educada que pediu 20 euros no menor quarto e eu disse que então queria café da manhã e ela concordou, mas como eu não tinha dinheiro tive que ir tirar e no caminho perguntei noutros lugares e todos queriam 25 ou 30 euros, e foi quando me lembrei da minha amiga Jéssica de Braga que me disse que era péssima idéia chegar nas cidades à noite. Tirei o dinheiro e voltei e quis dar uma volta, mas a dona da pousada, que se chamava Mariña, disse que fechava media noche e já eram dez e media e não havia ninguém en la calle. Eu disse que voltaria a tempo e perguntei quanto era a sopa, e ela disse dois euros e eu achei caro e fui tentar comer em outro lugar e talvez comprar um guia pra me salvar, só que quando saí realmente estava tudo fechado e essa cidade era bem mais pobre do que as de Portugal e tinha mesmo casas caindo aos pedaços e nada daquela pobreza romântica das ruas medievais do Porto, e pensei que era uma puta besteira de turista ficar rodando numa cidade desconhecida às dez e meia da noite ainda que estivesse claro, porque as ruas estavam vazias.

Voltei pra pousada e pedi a tal sopa, que era de macarrão e podia-se comer uns pedaços de pão junto, e quando terminei disse que ia dormir e pedi a chave e ela falou que me levaria até o quarto. Subimos dois andares e chegamos num andar que cheirava a mijo e ela me guiou até o fim do corredor, onde abriu uma porta e tinha um quarto minúsculo e ela disse que vinte euros era esse, e a cama era forrada com um tapete de feltro cinza com bolinhas coloridas como aqueles onde dormem cachorros e ela disse que não encontrava a chave fazia dois dias mas que eu podia colocar a cadeira contra a porta e ninguém ia me incomodar. Foi embora e eu resolvi que a única coisa a fazer era dormir e fiquei puto comigo de não ter escutado o conselho da Jéssica e de ter perdido o ônibus pra Ourense, e isso apesar de que o ônibus ia chegar num horário pior ainda e Ourense também não é uma cidade pra turistas, e fiquei me sentindo um puta de um turista idiota que está pedindo pra ser roubado e levarem tudo embora ou pior, e isso que o meu passaporte tinha ficado com a dona como eles sempre fazem nas pousadas por aqui.

Fui escovar os dentes e o banheiro cheirava mal também e era sujo, e quando fui dormir notei que minhas costas estavam doendo absurdamente por causa das mochilas e a cama mais parecia uma cova com um buraco que tinha no meio e provavelmente amanhã eu ia acordar mais moído ainda, e ainda corria o risco de me roubarem à noite, então tentei ouvir um pouco de música pra me acalmar mas a cada vez que a luz do corredor se acendia, e a minha porta era de vidro, eu tomava um puta susto, então decidi ver se a cama se mexia e vi que ela tinha rodinhas, por isso coloquei a própria cama contra a porta e fiquei pensando na melhor coisa a fazer se alguém tentasse entrar, que não devia levantar pois isso ia deixar a cama mais leve. As costas doíam e por isso fiz um bolinho de roupa e tentei compensar o buraco e até funcionou mas mesmo assim demorei muito pra dormir e decidi encerrar a minha carreira de caronista e comprar um guia no dia seguinte, além de não ir pra Ourense coisa nenhuma e pegar logo o ônibus pra Vigo, onde eu ia encontrar gente conhecida e era mais turístico. Enquanto mudava de posição tentando para a dor nas costas pensei que era a primeira vez na viagem em que fiquei totalmente sozinho e com gente suspeita num país onde não falam a minha língua e isso só ia piorar no Leste onde eu nem conseguiria me comunicar com a polícia em alguma emergência, e então pela primeira vez e depois de uma semana de festa e pessoas incríveis e diferentes minha garganta foi tomada de uma vontade angustiante de estar simplesmente na minha casa e ter uma família e amigos pra quem telefonar ao menos, e sabendo que isso não ia acontecer nos próximos dois meses e depois por um ano inteiro, e foi nessa hora que depois da empolgação da partida e de explorar um país divertido e rir dos costumes locais, e depois de conhecer poetas do mundo todo e ficar rodando por uma cidade universitária com eles pela madrugada, e depois do furor todo da viagem com um adolescente de 68 anos e que viajou com o Ginsberg e o Kerouak, e da saída inesquecível do meio de Portugal até a fronteira em 72h e de atravessar a fronteira de carrona com imigrantes ilegais e me empolgar a pé com duas mochilas pelos campos da Galícia, então depois de tudo isso finalmente e sem consiência pela dor e pelo medo e pela angústia, eu tinha deixado de ser um turista e era um viajante sem amigos ou familiares e sem importância nenhuma pros habitantes locais e essa era realmente a terra desconhecida aonde eu tinha chegado.

2 comentários:

Anônimo disse...

Há de dar tudo certo. Estamos torcendo pelo seu sucesso, como nosso mais recente e eficiente embaixador do VV ao mundo moderno. Mesmo porque o último que foi praí não manda grandes notícias...

Geraldo disse...

E com isso você se torna a segunda pessoa a ler isso até o final, aêêê! Valeu, Tiago, e quanto ao Rafa non se preocupe que eu mando notícias dele!

Abrazo!