quinta-feira, 31 de maio de 2007

72h (parte 2/3)

Bateram na minha porta várias vezes e então ouvi a voz do Stephen, 'Ronaldo, is it noon already?', e ele disse que tinha visto o sol lá fora e o jornal na tevê então devia ser meio dia, mas eu olhei meu iPod e eram sete da manhã, então falei isso pro Stephen que pediu desculpas e disse que nesse caso eu podia voltar a dormir, dormi mais um pouco e quando acordei já eram 11 e pouco, então saí e perguntei pelo Stephen mas a recepcionista e dona do lugar disse que ele tinha saído, e eu aproveitei pra tomar um banho e ficar pronto pra meio dia, mas quando desci ele não tinha voltado então peguei minhas malas e um livro e fiquei lendo. Logo depois ele voltou e perguntou se alguém tinha chegado e eu disse que não, e ficamos discutindo se devíamos deixar as malas no quarto e pagar a próxima noite ou não, mas a dona disse que tínhamos que decidir logo pra eles poderem arrumar as camas, e resolvemos que íamos esperar a Nora e seus amigos chegarem pra darmos a palavra final.

A Nora logo chegou sozinha e disse que os amigos tinham ido procurar o tripé da câmera que eles haviam perdido no mato, e sentou-se um pouco e os dois fumaram cigarros e então ela começou a contar essa história sobre como tinha sido dificil ficar sozinha com um casal na casa, e sobre as disputas internas femininas pela supremacia apesar de ela ser amiga do português desde criança e nunca ter rolado nada, e sobre como ficou mais fácil quando depois de três semanas e ela já estava enlouquecendo chegaram outras pessoas, e foi então que entendemos que toda a equipe eram os três e mais um carinha que entendia de filmes e havia chegado fazia pouco tempo, e que inclusive era por isso que ela chamava os amigos que estavam por perto pra estarem um pouco com eles. E também ela comentou sobre a falta de perspectiva deles e que eles queriam só fazer sucesso e ir pra MTV e não gostavam de ser políticos nas discussões então ela como estava sozinha ficava meio acuada mas estava bem desapontada com os jovens americanos que não ligam pro mundo e o Stephen lembrou que essas pessoas são filhos dos jovens de 68 e que era surpreendente que filhos de gente que trabalha em organizações de desenvolvimento fosse tão sem perspectiva, mas eu e a Nora discordamos e dissemos que essas organizações nem eram tão altruístas assim e que talvez até fosse por isso a desilusão, e a Nora disse que isso apesar de eles terem incorporado o meio ambiente e o auxílio e tal, e o Stephen disse que não era tanto incorporado quanto se apropriado e então os cigarros acabaram e achamos que era hora de almoçar.

Procuramos algum lugar pra comer e não havia como sentar fora como o Stephen queria em lugar nenhum, porque parece que há uma lei local que proíbe servir comida fora, de forma que tivemos que entrar e comer frango e porco dentro do restaurante, que estava um pouco abafado, mas a comida era ótima, e quando terminamos esperamos mas os outros não chegavam e decidimos ir telefonar. Eu e o Stephen rachamos a conta porque a Nora tinha perdido todo o dinheiro dela e a maquiagem numa sacolinha e não sabia onde, mas não parecia muito preocupada porque tinha um cartão. Meu cartão telefônico tinha sumido e tivemos que usar moedas, mas eles ainda não atendiam então a Nora disse que podíamos andar e eram apenas 15 minutos até a casa. Antes passamos no supermercado e a Nora sacou dinheiro e comprou umas cervejas, depois pediu pra eu guardar o troco e ser o banco dela até chegarmos na casa. Na saída ela pediu pra tomar a cerveja dela e contou uma história sobre como eles tinham visto um dia uma cobra gigante na estrada e ela estava quase morta, então eles a viram morrer e quando passou um camponês com um tridente pediram pra ele levantá-la e tiraram uma foto deles, depois pediram pra ele correr atrás da sua mulher com a cobra e os dois protagonizaram essa cena em que ela fugia e ficava batendo nele enquanto ele corria atrás dela com a cobra muito feliz. Depois decidiram levar a cobra pra casa e comê-la, mas quando abriram tinha uma outra cobra com três quartos do tamanho dela dentro dela, e eles cozinharam as duas e comeram, e a carne tem gosto de alguma coisa entre porco e frango, e em seguida estiraram os couros e puseram pra secar.


A viagem demorou bem mais que meia hora e eu estava bem impressionado com o passo do Stephen, que suava muito mas falava também e quase conseguia nos acompanhar. Passamos por uma ponte de pedra com cara antiga e a Nora disse que estávamos perto de um bar e o Stephen disse que então íamos parar lá, e pedimos umas cervejas e tivemos uma conversa fantástica sobre Portugal e a vila e ela contou essa história sobre a angolana que era odiada porque era a única negra da cidade e havia roubado o namorado da filha de uma família local importante, e falamos um pouco dessas histórias pequenas e o Stephen contou pra ela sobre como estávamos comentando que foi legal ela desabafar sobre a vida dela com o casal, e eu disse que foi mais excepcional ainda porque tínhamos estado com os três na noite anterior e parecia com uma peça de teatro na qual se vão descobrindo as coisas horríveis por baixo das aparências de normalidade e felicidade. Então a negra, que se chamava Val, passou, e a Nora cumprimentou ela com um Olá e ela era uma mulata bem clara e eu disse que estava imaginando uma negra mais escura, e tiramos umas fotos e fomos embora.

Andamos mais um pouco com o Stephen reclamando da distância e víamos vários velhinhos e velhinhas subindo ou descendo aquela estrada cercada por vinhedos, e eu perguntei se todos produziam vinho mas a Nora não sabia dizer, apenas que tinham roubado a destilaria da família do Gabe uns dias antes de eles chegarem. Chegamos à casa junto com o casal e tinha um outro cara que no começo achei estranho porque era um cara loiro meio sujo com um bigodinho fino e cabelo bagunçado mas penteado todo pra um lado, e eles disseram que o tripé estava exatamente onde eles tinham deixado e ninguém na vila mexia em nada.
Juntamos as coisas e a Nora colocou sua barriga postiça e fomos num carro filmar, e na casa de pedra havia uma mulher e duas senhoras que ficaram discutindo qual delas era a mais velha, e uma tinha certeza que já tinha feito 90 anos mas não sabia dizer em que ano tinha nascido, então eu contei isso pro Stephen e ele ficou me incitando a perguntar coisas pra elas, e descobrimos que elas sempre trabalharam nas vinhas até só dois anos atrás e se chamavam Carlota e Ricardina e a Carlota tinha filhos na América mas não sabia dizer onde e subia todos os dias a ladeira até sua antiga casa para cuidar da horta e tinha ido uma vez à França e só.


Então fizemos silêncio pra eles filmarem essas cenas no qual o Gabe achava a Nora no rio e a levava para a tia dele no filme, e o cara local que se chama Rubens e faz o estuprador no filme apareceu com um amigo porque não sabia se tinha cenas com ele mas não tinha, então eles ficaram assistindo só, e aí fomos embora pra casa, onde vimos e-mails e o Gabe, o Stephen e a Nour, que não se chamava Nora mas Nour e algum nome árabe, ficaram discutindo seus trabalhos de artistas plásticos e a Nour nos mostrou o filme com o qual ela tinha concorrido a Frenois que era sobre Jesus Cristo mas num ritmo meio videoclíptico.
Ficamos mais um pouco lá tomando cerveja e chá de hortelã porque todos na casa estavam meio resfriados principalmente a Katie, e então saímos pra jantar e eles disseram que íamos numa Pizza Hut e o Stephen ficou meio contrariado, então eles encontraram um iPod e ficamos o caminho todo ouvindo várias vezes The Rhythm of the Night, e quando chegamos não era uma Pizza Hut mas uma pizzaria chamada Fernando que servia uma pizza meio parecida com a brasileira, e pedimos umas diversas e um pouco de vinho e jogamos um jogo de cartas chamado Bullshit, e o Stephen ganhou e depois eu ganhei e aí comemos e a pizza estava muito boa e era gigante, e só eu e o Stephen comemos tudo e os demais guardaram pra outro dia a deles. Depois o casal e a Nour foram jogar pebolim e eu e o Stephen e o Daniel, que era a quarta pessoa, ficamos conversando um pouco sobre o que fazíamos. Dividimos a conta e voltamos e a Katie insistiu em tocar The Rhythm of the Night todo o caminho e eu fiquei convencendo o Daniel a ir pro Brasil mas não pra São Paulo a não ser que ele conheça alguém lá, e o Stephen queria ir pra um bar e a Nour ia conosco, mas chegando lá ela disse que estava cansada então eles deixaram nós dois no nosso hotel, e o Stephen tinha que pegar um ônibus até Lisboa pra pegar o vôo de volta no dia seguinte então nos despedimos, e o Gabe disse que dia 23 começava a exposição dos trabalhos dele em Lisboa e eu respondi que achava que ia estar em Lisboa nessa época e ele me disse pra com certeza ir visitá-lo.
Eu e o Stephen tocamos a campainha mas ninguém atendeu de novo, então tentamos abrir a porta e vimos que estava aberta e minha chave estava na recepção e o Stephen estava com a dele, mas queria tomar um vinho antes de dormir e não havia ninguém, e decidimos vasculhar a cozinha e achamos uma geladeira mas procuramos vários vinhos e só havia brancos e o Stephen queria um tinto, que eu apontei que devia estar em outro lugar por causa da temperatura, e ele concordou mas achou melhor pegarmos um branco do que invadirmos ainda mais o lugar, e ele tirou o abridor que sempre carregava e abriu o vinho. Logo depois a dona chegou e não se importou nada de termos aberto, e ainda estávamos no restaurante do hotel, e comentamos que éramos as únicas pessoas desde que tínhamos chegado e que os negócios deviam ir mal, e logo em seguide decidimos subir pro quarto.
No quarto falamos um pouco mais e o Stephen disse que estava reticente no começo porque não queria trazer pra conhecer a amiga dele com quem ele queria algo mais apesar de ela ter 22 anos um cara jovem, e que era a mesma coisa com o Márcio, mas que agora tinha ficado muito feliz de eu ter ido com ele, e logo depois disse que precisava pegar o ônibus das 8 e meia pra Lisboa então ia dormir. Perguntei se ele queria rachar as garrafas, e ele disse, 'You don't mind, do you?, unless you are travelling on a shoestring', e eu disse que não sabia o que era isso, e ele explicou que era com dinheiro contado, e eu disse que um pouco por causa do ano seguinte em Paris, mas que não era nada muito estrito, então ele desceu pra pagar a sua conta e voltou dizendo que a dona do lugar deu as garrafas em cortesia, e que isso era muito generoso, e eu disse que nem era essa a palavra, que nem tinha palavra pra um estabelecimento comercial que oferece coisas de graça pra quem não vai voltar, então nos despedimos e ele conferiu o endereço dele e disse pra eu escrever ou telefonar quando estiver em Paris e pegou metado do vinho que sobrou e foi embora. Liguei a tevê e fiquei assistindo a um stand-up comedy português até terminar a minha metade do vinho e então dormi.

3 comentários:

GGG disse...

As impressões estão cada vez mis detalhadas. Quase se pode viver s coisas junto com você.
E o estilo passou p'ra linha "metralhadora giratória". Dá sensação de perder o fôlego ao ler. Me "pego" respirando forte após um parágrafo mais longo.
Lembra um pouco o estilo de Roberto de Mello e Souza em "Mina R".
Muito divertido.
Ronaldo pai
P. S.: Sente-se apenas falta de fotos.

Geraldo disse...

Estava com computadores ruins. agora hecho.

ana rüsche disse...

oi, gegê!

cara, tá foda! leio tudo sempre, mas em geral só superficialmente, é o que posso fazer por hora - depois vc imprime tudo, hahahá.

ah, sim: eu confundo um pouco as 'personagens', se puder ressaltar as alcunhas de quando em quando iria ajudar...

no mais, postei no peixe.

beijos do além mar